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Nunca é só futebol
Os que jamais alargaram o olhar em um campo de futebol, talvez nem precisassem dos olhos.
Capítulo 01 - Sonho de Menino
Todo menino sonha; aliás, a arte mais exímia da infância é precisamente esta, a de sonhar. A tessitura deste imaginário é assunto que mereceria minuciosos estudos e zelosos cuidados na formação de qualquer pessoa. Pais, televisores, internet, mestres, tios, sobrinhos, até o astronauta de passagem, todos contribuem com seus traços. Contudo, há um influenciador que, embora desprovido de intenções humanas, revela-se talvez o mais feroz entre todos.
Eis o futebol.
Esporte que, brotado do seio da nobreza inglesa, germinou nos exclusivos clubes dos privilegiados. Felizmente, esses ilustres não puderam antever a voz própria que tal esporte haveria de assumir.
Certa feita, assisti a um filme em que se dizia que o Rugby, igualmente apreciado pelas altas rodas inglesas, era um esporte de brutos jogado por cavalheiros; já o futebol, um esporte de cavalheiros jogado por brutos.
Isso se deve, talvez, à fácil adaptação das camadas menos abastadas ao jogo, algo que perturbava profundamente os jovens de apartamento da Inglaterra vitoriana.
É sabido que o English team se recusou a participar das primeiras copas do mundo, alegando que não precisavam de uma competição para provar sua supremacia. Mal sabiam eles que o gato já subira ao telhado e que a redonda já contava com amantes e amados pelos quatro cantos do globo.
Capítulo 02 - Preparação pré-jogo
Mas abandonemos a história contada e mergulhemos na história sentida, pois é dessa seiva que o futebol se alimenta.
Ano de 2000 do nosso Senhor, e o Brasil celebrava quinhentos anos de descobrimento. O futebol, por sua vez, ressoava com a última grande geração destinada a nos representar e encher de orgulho nas copas. O curioso é que alguns desses astros ainda desfilavam sua arte nos campos brasileiros ou estavam de regresso, um fenômeno que se tornaria cada vez mais raro.
A data precisa era 9 de julho de 2000, um domingo plácido.
Desperto cedo, pois ir ao Mineirão em Belo Horizonte sempre exige esforço; por isso, dedica-se o dia todo ao evento.
Aos dezessete anos, aventurar-se a um estádio por conta própria é empresa complicada.
Primeiramente, meu amigo Rodrigo assegura os ingressos. Saímos cedo rumo ao Mercado Central, onde, antes dos jogos, os torcedores mais tradicionais se reúnem para tomar cerveja e saborear fígado com jiló acebolado na manhã.
E o primeiro espetáculo, aparte da ida ao estádio em Belo Horizonte, revela-se nos corredores apinhados do Mercado Central. O tilintar dos copos de vidro Lagoinha batendo nas mesas ou entre si, o sibilar da chapa crepitando o fígado acebolado com jiló, tudo isso ao lado das lojas que vendem peixinhos vivos e coloridos em saquinhos plásticos para crianças, que mal suspeitam da breve duração dessas pequenas vidas.
É a fusão de uma feira indiana com um grande bazar turco, mas aos domingos há o inconfundível tempero da arquibancada, pois é certo que ali, nesse tumulto de sons e aromas, começa o jogo para nós, fervorosos torcedores.
Aos dezessete anos, eu me contentava com refrigerantes, mais por escassez financeira do que por preferência. Eram onze da manhã, e eu me pegava ponderando se Clebão, nosso zagueiro à moda antiga, havia descansado bem, pois teria pela frente a tarefa de marcar França, um dos mais destacados atacantes do Brasil naquela época. Aliás, a final era entre Cruzeiro e São Paulo, o maior azul do mundo contra o time brasileiro mais laureado da última década, que naquele ano ostentava um elenco de jogadores de inegável gabarito. O Cruzeiro se apresentava como uma espécie de zebra quase improvável; o time, reconhecidamente limitado, contava com alguns jogadores que já tinham sido preteridos por outros grandes clubes, além de alguns jovens da base. Para piorar, já era sabido que o técnico estava destinado a deixar o comando da equipe, independentemente do resultado daquela partida.
Capítulo 03 - O Caminho ao Rei
Regressando ao sonho da meninice, são justamente esses momentos que definem se alguém lutará para se tornar jogador ou se entregará de corpo e alma ao amor por um clube de futebol.
Há muito tempo, eu já havia determinado minha paixão pelo maior azul do mundo. Contudo, naquele dia, desconhecia que seria mais uma vez confrontado com a evidência de como o amor pode ser constantemente reavivado. Eis o poder intrínseco do futebol.
A jornada em direção ao estádio se inicia às uma da tarde, na cidade de Belo Horizonte. Do centro à arena, são vinte minutos de trajeto de carro sem entraves, porém, com o congestionamento, a viagem se estende a quase duas horas. Tempo suficiente para que a polícia detenha o ônibus duas vezes, realizando minuciosas revistas em todos os passageiros em busca de qualquer sinal de suspeição. Tempo para três audazes indivíduos se aventurarem a escalar o teto do ônibus em uma espécie de surfe urbano. Tempo também para o veículo ser alvejado por uma pedrada, lançada pela torcida rival local. E tempo, igualmente, para que uma mulher solitária e desprevenida, ao ingressar no ônibus, se alarme com a atmosfera que sugere uma rota direta ao Carandiru; diante de tal cena, compreensivelmente, ela logo abandona o veículo em busca de uma alternativa menos hostil.
Tudo isso ao ritmo cadenciado dos suaves cânticos bélicos entoados pelas torcidas (des)organizadas, como "ei, galo vai tomar no cu" ou "a máfia vai te pegar". O interessante é que, apesar da lotação do ônibus, ninguém desembolsava a passagem, não por norma ou generosidade, mas sim por uma convenção social tacitamente estabelecida naquele momento, ali mesmo, entre o motorista, o trocador e os passageiros. Ao atravessarmos a roleta sob o olhar inerte do cobrador, este fingia indiferença, desviando os olhos para o infinito, mais por temor do que por reverência.
Era como uma jornada rumo à guerra, mas uma guerra que remontava a tempos antigos, pré-romanos; um exército de camponeses azuis avançava em direção ao campo de batalha, onde receberíamos as instruções do comandante. Este exército, ainda desprovido de liderança clara, cometia seus desatinos ao longo do caminho. Alguns policiais tentavam restaurar a ordem, enquanto, por vezes, em meio ao tumulto, ecoavam gritos de "zerooooo", como um alerta para aqueles que se distanciavam do objetivo final: alcançar o estádio. Este último, nosso Coliseu, encenava a batalha de nossa comunidade contra outra, embora com menos efusão de sangue do que a arena romana.
Toda grande estrutura cativa os olhos humanos, porém, um estádio de futebol possui uma peculiaridade singular, pois é percebido de maneiras distintas em cada cidade.
O Mineirão, erguido às margens da Pampulha, revela-se de forma marcante aos olhos dos que o avistam. Para os cruzeirenses, o caminho costumeiro desenrola-se pela Avenida Antônio Carlos, uma via estreita, frequentemente congestionada. Contudo, ao alcançar a altura do Shopping Del Rey, já se sente a atmosfera das arquibancadas. Nesse ponto, uma pequena elevação se destaca, culminando no início do campus da UFMG.
Daquele ponto distante, avista-se o Mineirão, erguido como uma coroa majestosa e imóvel, semelhante a um rei sereno, aguardando a chegada de seus gladiadores seguidos por súditos, todos prontos para demonstrar seu valor. Em uma final, essa imagem se intensifica, pois o rei se mostra implacável: ou se exibe coragem e se conquista a vitória, ou se é derrotado, executado e humilhado ali mesmo pelo monarca absoluto. Independentemente da identidade do desafiante, se este não estiver à altura, o rei Mineirão não hesitará em esmagá-lo.
Capítulo 04 - Aquecimento
Chegar ao estádio foi difícil, mas chegando você entender um complexo enorme, um longo estacionamento, vendedores ambulantes ofertando cerveja, água, camisetas falsificadas e as tão temidas faixas de campeão, o jogo nem começou e os camelos tentam seduzir torcedores mais confiantes ou supersticiosos a se deleitarem com essas faixas infames.
Ao trilhar o caminho rumo ao Mineirão, depara-se com aquela estrutura imponente, que se avizinha a cada passo, revelando-se sob diferentes ângulos. É como se o estádio repousasse sobre uma prateleira giratória, desafiando incessantemente o espectador a conquistá-lo. O torcedor, inicialmente cético diante da grandiosidade da empreitada, reconhece, porém, que há onze homens que se preparam para batalhar por aquele feito. E ali, junto a eles, estamos nós, os súditos torcedores, pronto para contribuir como puder.
Nas imediações do estádio, ao longo do anel que o circunda, avultavam-se várias barracas, onde se vendia comida, bebida e o afamado tropeiro. Um tio meu, o conhecido Tio Toninho, devoto torcedor do Atlético e exímio contador de piadas, sugeriu-me certa artimanha, cuja eficácia em tempos de escassez não se negava, embora não ostentasse virtudes morais.
Numa das barracas abarrotadas, com três ou quatro atendentes e uma multidão de clientes aglomerados ao redor, aconselhava-se: detenha-se ali por breves cinco minutos, aguardando que os atendentes se acostumassem com sua presença. Então, num instante de pressa e agitação, irrompa com voz firme e olhar decidido, clamando: "Cadê o meu?" O tumulto do fogão, o eco dos tambores dentro e fora do estádio, aliados à algazarra e ao burburinho geral, contribuirão para desnortear o atendente, compelindo-o a indagar, aturdido: "Qual é o seu?" E é nesse preciso momento que se pede o que se deseja, informando-lhe que já se entregaram as "fichas" que comprovam as compras.
Assim se desenrolou, sem desembolsar um tostão, a façanha eu e Rodrigo, meu amigo, conquistamos dois tropeiros, dois espetinhos e um refrigerante.
Eu avisei que não primava pela moralidade.
O tropeiro do Mineirão emerge como uma obra-prima da culinária mineira. Ainda que concebido pelos paulistas, foi em solo mineiro, à sombra do Mineirão, que esse prato alcançou o apogeu gastronômico que lhe é devido.
Feijão, torresmo, farinha de mandioca, cebola picada, linguiça calabresa, bacon em cubinhos, alho picado: todos esses ingredientes amalgamados resultam numa iguaria sublime, coroada pelo emblemático ovo frito sobreposto (o famoso "zoiudo").
Assim como sustentou os bandeirantes em suas expedições pioneiras, esse prato agora nos sustenta nesta guerra moderna, simulada e resguardada que é o futebol.
Capítulo 05 - A Entrada
Nutridos e embriagados pela caótica sinfonia de quase oitenta mil pessoas, movendo-se em uníssono em direção ao estádio. Neste instante, os estreitos e angustiantes portões, que singularizam a entrada de todos, geram filas que assemelham-se a redemoinhos humanos, onde não se caminha, apenas se acompanha o rumo ditado por essa centrifugação. Os próximos vinte minutos serão de aperto e suor alheio, enquanto seu olhar permanece fixo no estádio, imponente diante de você, mas tão próximo ao alcance. Nas cercanias do Mineirão, o ar é frio, o vento chicoteia as curvas das paredes do estádio e ecoa entre a multidão humilde que se aglomera para adentrá-lo. É impossível justificar ou explicar o amor por algo tão doloroso. Talvez aqui residam aspectos que a inteligência artificial jamais conseguirá capturar.
Adentramos. E este momento assemelha-se a entrar em campo; erguem-se as mãos como vitoriosos, transpomos todas as trincheiras, avançamos sobre as necessidades e agora galgamos as escadas com passos ávidos nos degraus. O primeiro lance é célere, o segundo nos encaminha ao anel interno. Neste anel, voltamos à esquerda e deparamo-nos com um terceiro lance de escadas, onde, com certeza, seus olhos serão presenteados com uma das mais belas criações que a humanidade moderna pode oferecer.
Um tapete verde, banhado pelo sol do crepúsculo, é acariciado pela água que o umedece, proporcionando à bola uma velocidade ampliada, e ao estádio como um todo, um frescor que emula o suave perfume de um jardim.
Poucos monarcas têm o privilégio de desfilar sobre este tapete; ele é sagrado, requer merecimento genuíno, não apenas educação ou linhagem nobre. Para pisar neste tapete, é necessário conquistar tal honra, e mesmo aqueles que o fizeram por muitas vezes são relegados quando o palco real do futebol julga-os indignos.
Por entre as muralhas do estádio-rei, com sua coroa acomodada, reside sua verdadeira nobreza: os torcedores. E já estava notavelmente cheio, com o azul predominando e contrastando com o verde do sol que timidamente se refletia no gramado. Ao fundo, uma faixa vermelha e branca, compacta, lutadora e tenaz, representando a torcida adversária, já estava completamente presente no estádio.
Do meu assento, contemplava 85 mil almas acomodando-se, rezando, torcendo, gritando, amando – tudo isso em antecipação ao grande embate que estava prestes a se desenrolar.
Eu já estava lá, faltava apenas uma hora.
Capítulo 06 - Concentração
Os perigos espreitam de todos os lados, pois enquanto se mantém alerta em uma direção, torna-se vulnerável em outra. O futebol é essa dualidade: atenção e vulnerabilidade. A todo momento, seu time deve permanecer vigilante, eliminando suas próprias fragilidades e observando as fraquezas do adversário. Pode parecer um fardo hercúleo, como o de Atlas, condenado por Zeus a carregar o peso do mundo eternamente, mas aqui, esse peso se limita a apenas 90 minutos. Assim, jogadores e torcedores suportam um fardo bem mais leve. Hahaha
O estádio repleto começa a transformar o clima por completo. Do alto, avista-se toda a extensão do estádio, e a sensação de caldeirão em ebulição começa a se manifestar. Não porque esteja quente, mas sim porque, apesar de mais de 85 mil pessoas presentes, qualquer incidente, briga ou tropeço é testemunhado por milhares, que sempre reagem em conjunto: gritos, vaias ou o início de algum cântico. É preciso compreender que uma simples faísca pode desencadear uma reação em massa, e rezamos constantemente para que essa reação seja positiva.
Tudo pronto, times perfilados em campo, fogos de artifício estourando, gritos ecoando e os jogadores se agrupam para a peculiar foto de campeão, capturada antes mesmo do início da partida. O curioso, é que a imagem de um dos times será descartada e jamais divulgada e ninguém pensa nisso.
Carlos Eugênio Simon, alto, ligeiramente calvo, com a aparência do professor girafalês, destacava-se como um dos árbitros mais renomados do Brasil. Para aqueles que torcem por times fora do eixo Rio-São Paulo, conhecer sobre o árbitro é tão ou até mais importante do que ter um time de qualidade em campo. Até rezei por ele.
De um lado, encontra-se o mais vasto azul do mundo, enquanto do outro, está o maior time de São Paulo composto por três cores (ressalta-se que só existe um tricolor, o Fluminense). Aliás, é notável como os uniformes dos times tricolores são sempre semelhantes, com listras verticais contendo as três cores ou uma cor dominante com as outras duas em faixas horizontais no meio da camisa. Deve ser uma tarefa árdua criar uniformes para equipes tricolores, mas isso não é da minha alçada.
Capítulo 07 - Primeiro tempo
Na hora exata, ecoa o apito. O estádio irrompe em um mar de chamas azuis com uma ponta de vermelho, 85 mil espectadores, além da audiência televisiva, contemplam ansiosamente os destinos que a bola, completamente alva, seguirá. O estádio, assemelhando-se ao Coliseu, está pronto para celebrar o vencedor ou para presenciar a derrota dos desafortunados.
Do nosso lado:
André - Não estava em grande fase, mas possuía vasta experiência.
Rodrigo - Lateral melhor que um cone.
Cris - Ainda um juvenil em desenvolvimento.
Clebão - Zagueiro, zagueiro, zagueiro.
Sorin - Futuro ídolo cujas habilidades em campo eu não conseguia compreender.
Donizete Oliveira - Sabia o que estava fazendo
Ricardinho - Motor do time
Marcos Paulo - Sabia o que estava fazendo
Jackson - Atacante veloz.
Giovanni - Possuía alguma habilidade no time.
Oseas - da Bahia.
E já do outro lado:
Rogério Ceni – guardava as redes da seleção com esmero.
Belletti – o expoente máximo dos laterais do Brasil.
Edmílson – sagrar-se-ia campeão do mundo dois anos depois.
Rogério Pinheiro – nosso homem de confiança.
Fábio Aurélio – nunca comprometia.
Alexandre – dele, mal tenho lembrança.
Maldonado – chileno de firmeza inabalável.
Raí – se não conheces Raí, boa gente não és.
Marcelinho Paraíba – era falta, era gol.
Edu – boa alma.
França – era gol.
O Cruzeiro era visivelmente inferior ao São Paulo na escalação.
Inicia-se a partida, e a bola é nossa (que metáfora sublime para o futebol).
O coração do Cruzeiro pulsava nos três jogadores do meio-campo: Ricardinho, Marcos Paulo e Donizete Oliveira. Defendiam como leões em defesa de seu alimento ou de sua prole, e inauguravam as jogadas ofensivas com a destreza de garçons da alta gastronomia, conhecedores de todo o cardápio.
O trio equilibrava a contenda, e o São Paulo não lograva impor sua superioridade técnica. Cada tentativa de ataque dos paulistas era rechaçada com a força de um ferreiro a moldar o ferro em brasa.
O meio-campo do Cruzeiro funcionava bem. Quando o São Paulo tomava posse da bola, o meio-campo a retomava prontamente, distribuindo-a com precisão aos atacantes. Os avançados perdiam a bola, e novamente o meio-campo celeste a recuperava.
Não importava quantas vezes o São Paulo investia, o trio sempre roubava a posse, numa ação que parecia destinada a perpetuar-se eternamente, caso a partida assim o permitisse.
Aos 11 minutos e 22 segundos, para aqueles que acompanhavam a transmissão pela Globo, deu-se um momento célebre: Salomé foi filmada. Ali estava uma figura que traduzia em si tudo o que o futebol pode significar para um coração azul. Salomé, contudo, merece um livro à parte, o qual, infelizmente, não será escrito aqui. Beijos, Salomé.
Durante uma partida final, esquecemos do que ocorre ao nosso corpo ou às nossas feições; é como se apenas os olhos e o coração funcionassem, e o resto fosse mera insignificância. O jogo prossegue no limite da tensão: ninguém erra, ninguém acerta efetivamente.
Aos 14 minutos e 40 segundos, um simples lançamento na área do Cruzeiro fez o coração disparar. O goleiro André não consegue segurar a bola de primeira, mas, em um segundo esforço, agarra-a com firmeza. Ufa, tudo seguro novamente, inclusive o coração.
Aos 33 minutos e 30 segundos, um chute do volante azul Donizete Oliveira leva Rogério Ceni a falhar, mas a bola acaba saindo. Mal sabíamos que lances como esses, repletos de erros, permeariam a decisão do jogo.
O São Paulo, de fato, não conseguia demonstrar sua superioridade em campo. E então, aos 37 minutos e 20 segundos, deu-se aquele momento em que o coração pára e parece que Deus está em campo, mais para se divertir do que para ajudar.
Giovani, o camisa 11 azul, desliza pela ponta direita do ataque celeste, para, breca e desfere um passe despretensioso para trás, nos pés do lateral Rodrigo. Este, por sua vez, titubeia um tanto, parecendo não saber ao certo o que fazer com a bola. Contudo, como o marcador não o pressiona, tudo parece estar tranquilo. Logo, ele opta pela decisão mais ordinária: com pouca força e aparentemente sem direção, ele cruza a bola para a área.
Posteriormente, analisando com serenidade e minúcia, percebe-se que o volante Ricardinho se encontra desmarcado na área, precisamente para onde ele dirigiu a bola. Porém, de acordo com os acasos que insistem em interferir no futebol, o zagueiro do São Paulo desvia a trajetória da bola. A defesa segue em direção ao gol, sem notar o desvio, enquanto apenas Oseas da Bahia, o grande artilheiro da competição, percebe a mudança e freia seu avanço para aguardar a bola dentro da área.
A velocidade da jogada é surpreendente. Oseas, que se encontrava dentro da área, ainda distante do gol, escora a bola de cabeça para o centro da área, numa diagonal onde dois jogadores azuis avançavam sem oposição pela zaga estática.
A bola sobra, linda, limpa e clara, para o veloz Jackson. Tendo apenas Rogério Ceni à sua frente, com a bola sob controle, ele chuta com a esquerda em direção à trave esquerda do ataque. Por um movimento milimétrico, o espetacular Rogério Ceni consegue resvalar a perna na bola, que segue caprichosamente em direção ao gol, batendo na trave esquerda. Com os jogadores deitados no chão, incrédulos diante da trajetória da bola, esta retorna como um presente para o volante Ricardinho. Entretanto, o mais irônico ocorre: o volante tenta empurrá-la para as redes da baliza completamente desguarnecida, mas a bola sobe, sobe de tal forma que desaparece atrás do gol.
Reafirmo, se Deus aprecia o futebol, decerto o coloca nas categorias de drama e comédia.
Ao soar dos 45 minutos, o primeiro tempo encerra-se. Ninguém foi coroado, ninguém degolado. Resta agora aguardar pelos detalhes.
Capítulo 08 - Não se volta ao vestiário sem a taça
O segundo tempo inicia-se de forma truncada, o que para os que possuíam uma equipe menos badalada era auspicioso, pois qualquer bola vadia poderia nos favorecer. Contudo, o problema reside no fato de que a bola é redonda; sendo assim, ela não escolhe lado, simplesmente premia aqueles que a tratam melhor, ou menos pior.
Aos 20 minutos, falta na ponta direita do ataque do São Paulo, quase um escanteio abreviado. Dentro da área, todos se concentram, cientes de que dessas raras jogadas não se espera muito, pois não há ângulo para um gol direto, nem espaço para uma força no cruzamento dentro da área. Contudo, na cobrança, emerge um especialista: Marcelinho Paraíba.
Ele se posta como um jogador de pôquer, ocultando suas intenções, enquanto todos aguardam a bola na área. Entretanto, ele a bate diretamente, com precisão: nem alta demais, nem forte demais, nem baixa demais; uma bola mediana. Os jogadores do São Paulo na área, devidamente ensaiados, desviam-se diante do goleiro André, que, infelizmente, não consegue avistar claramente a trajetória da bola, que passa por cima dele, encontrando o caminho do fundo da rede.
Inacreditável a falha. Naquele instante, o silêncio se instaura com a força de uma mordaça, como se todos fossem privados da fala, exceto a torcida são-paulina. Os azuis sentem a lâmina do Machado afiada rente ao pescoço, como se o rei Mineirão já tivesse eleito seu campeão, mas ainda restavam 25 minutos para contestar essa sentença.
Capítulo 09 - Do que é feito um campeão?
Constantemente discorremos sobre a coragem e a audácia, instruímos as crianças de que, por vezes, é imperativo empreender o que pode significar seu fim, porém jamais investigamos a origem dessa coragem, o que a lança para além de nós. Loucura, audácia e irresponsabilidade?
Desta vez, ela brotou de onde menos se aguardava. Márcio Aurélio, o timoneiro daquela nau, desprovido do fulgor que brilhava nos grandes nomes do mercado futebolístico, que tantas vezes brindavam os principais técnicos do Brasil. De índole comedida e serena, à moda dos bons mineiros, ele empreendeu mudanças, retirando os defensores para dar passagem a jogadores de ímpeto mais ofensivo.
Müller, o atleta histórico, gladiador que outrora ergueu a taça mundial com as cores do próprio São Paulo, já vislumbrava o ocaso de sua trajetória nos gramados. Contudo, sua mente mantinha-se afiada e apta, plenamente consciente de sua relevância no instante em que adentrou o campo, alterando irreversivelmente o curso da partida.
Se a bola passava pelos pés de Müller, resultava inevitavelmente em um tiro certeiro em direção ao gol. Em um breve intervalo de tempo, três investidas capitaneadas por ele culminaram em defesas cruciais de Rogério Ceni. No entanto, após esses três lances, fomos atingidos por uma estocada que quase nos aniquila por completo. Dois jogadores do São Paulo partiram em um contra-ataque fulminante, adentrando a nossa área, porém falharam na finalização. Ufaaa! Restavam apenas 15 minutos, e o Mineirão parecia ter firmado sua convicção sobre qual time seria coroado campeão.
Marco audacioso Aurélio ainda fez ingressar Fábio Jr em campo, não o afamado cantor, mas um atacante que regressava do futebol europeu, almejando reavivar o êxito de sua carreira que foi apagada no velho continente.
O São Paulo ainda teria uma oportunidade de liquidar o jogo antes que as artimanhas futebolísticas divinas começassem a se desenrolar; faltavam apenas 13 minutos.
Aos 34 minutos, avulta uma oportunidade que poderia alterar o destino da partida: defesa compacta, passes intrincados pelo meio sem uma meta clara. A esfera encontra-se sob os pés de Ricardinho, o fulcro de nossa equipe; ele hesita, porém, logra encontrar um passe rasteiro e retilíneo aos pés de Müller. De costas para o arco, Müller resguarda a pelota com a delicadeza de quem embala um recém-chegado ao mundo, realizando um toque para controle e outro para um passe delicado a Fábio Júnior. Este, lançando-se como um projétil pesado em direção à quina da pequena área, não titubeia e dispara uma bomba que parece transpassar a própria guarda de Rogério Ceni. Gooooollllllllllllllll!
O Mineirão ressoa em alarido, e com justiça: o estádio, em toda sua imponência, observa com suspeita sobre quem será agraciado com o título. O empate ainda é do São Paulo, porém, o orgulho que muitas vezes permeia os verdadeiros vencedores acabara de encontrar um novo lar.
O temor começa a envolver o ambiente como uma névoa, opressivo para alguns, ou apenas uma cortina que se pode atravessar facilmente para outros. De forma clara, para o São Paulo, o receio de perder o título que já parecia estar em suas mãos era mais acentuado, enquanto ao Cruzeiro restava apenas o medo de não haver tempo suficiente, pois nenhum jogador azul estava disposto a abrir mão da força e do esforço pela vitória.
Capítulo 10 - Sobrenatural de Almeida (nota a Nélson Rodrigues)
Pela penúltima vez, o destino brinca com seus caprichos sobre o campo verde. Aos 41 minutos, o São Paulo dita o ritmo do jogo, cadenciando a bola pelo centro do campo. O Cruzeiro, vigilante porém inerte, aguardava por uma brecha na armadura do São Paulo, e ela, enfim, se apresenta.
O volante do São Paulo, com a esfera sob controle no centro do campo, recua-a após uma pressão exercida pelo meia Ricardinho. O passe é de qualidade questionável, e o zagueiro Rogério, por opção ou circunstância, permite que a bola avance em direção ao goleiro Rogério Ceni. Entretanto, o que não se esperava era a rápida investida do ágil Geovanni, promissor jogador cruzeirense oriundo da base, que parecia extrair um fôlego eterno para ultrapassar o zagueiro em desespero, pois vislumbrava que não conseguiria alcançar a bola antes dele. O jovem desbrava o campo, alcançando a esfera em condições favoráveis, frente a frente com o arqueiro de trajes negros. O desfecho permanece incerto: resta-nos a dúvida se nosso atacante terá a destreza necessária para superar o magnífico Rogério Ceni.
Num derradeiro gesto, típico de um zagueiro em plena efervescência de um campeonato decisivo e nos instantes finais da peleja, ele trava o avanço do atacante azul, provocando uma falta. O incidente ocorre na borda da meia-lua, porém ainda fora da área.
O estádio se agita em indignação, e o juiz Simon, ágil como um raio, não hesita em expulsar o defensor pela falta rude, porém imprescindível.
Restam apenas seis minutos para o término da partida, e o São Paulo convoca todos os seus atletas para defender a jogada. Surgem três possibilidades: Müller, para uma cobrança calculada; Ricardinho, para um disparo vigoroso; e Geovanni, cuja técnica de cobrança permanecia um enigma para mim.
A barreira se ergue imponente, com os jogadores azuis alinhados ao seu redor. Geovanni e Ricardinho, distantes da bola, preparam-se para a cobrança, sugerindo a intenção de um disparo vigoroso. Enquanto isso, Müller, incansável, murmura aos ouvidos dos companheiros próximos à muralha do São Paulo. Porém, em determinado instante, ele se volta para Geovanni. Como um pastor evangélico, imbuído das palavras sagradas para conduzir seu rebanho, ele proclama:
"Chuta (na barreira), porra!"
(Forte)
(Baixo)
Não se pode ter certeza absoluta, mas algo foi compreendido. Ricardinho desvia-se da trajetória da esfera, e Geovanni avança, solitário, rumo à redonda. O estádio mergulha em um silêncio sepulcral, naqueles efêmeros momentos em que até mesmo o sussurro de uma agulha caindo no gramado ecoaria, condenando-a ao silêncio eterno.
Corações pairam em suspense, enquanto ele avança em direção à bola, a barreira imóvel, cerrando todas as passagens em direção ao gol. Parecia certo que a esfera seria repelida pela barreira, mas foi naquele instante, em 1968, na cidade de Bauru, precisamente em 21 de fevereiro, que Donizete Oliveira veio ao mundo. Após percorrer inúmeras voltas da vida, tornou-se jogador de futebol e, naquele dia, vestia a camisa azul. No milésimo de segundo em que Geovanni se eleva levemente no ar para imprimir mais força ao chute, todo o estádio é envolvido pelo som da chuteira encontrando a bola. O meia empurra a barreira com um toque magistral, forçando seus integrantes a mudarem suas posições, porém, continuam a bloquear todas as passagens em direção ao gol. Contudo, quando a esfera começa a girar velozmente sobre a grama verde, por uma fração de segundo, o jogador de camisa 17 abre inconscientemente o espaço perfeito para sua passagem. A bola desliza rapidamente pelo gramado, tocando-o e erguendo-se ligeiramente. Eu, do outro lado do estádio, com os olhos cerrados, ouço o abraço das redes à bola. Gooooollll…
O estádio, o narrador, Rogério Ceni e toda a nação brasileira parecem incrédulos; somente o Mineirão, em seu trono majestoso, compreende que naquele momento outro rei ascendia. O fervor das vozes, os abraços, os gritos e a festa dos torcedores azuis se espalham pelo recinto como uma chama única e inextinguível.
Ali, o extraordinário já se materializara, mas os desígnios do futebol reservavam ainda mais reviravoltas.
Capítulo 11 - Deus e seus Caprichos
O São Paulo reinicia o jogo com ímpeto, determinado a recuperar a aura de campeão que perdera. Velozmente, uma bola cruzada na área do Cruzeiro alcança o extremo oposto, onde o zagueiro Cris, outrora impecável, vacila no timing do lance. O jogador do São Paulo domina a bola já dentro da área e realiza um cruzamento curto, porém certeiro, encontrando a cabeça do impiedoso Marcelinho Paraíba.
Desembaraçado na pequena área, ele cabeceia com firmeza em direção ao solo, seguindo os preceitos do mestre Dadá Maravilha. No entanto, o espetacular de Souza muda de goleiro e André, que minutos antes flaquejara, consegue desviar parcialmente a trajetória da bola. Esta quica e avança sorrateiramente em direção ao gol, prestes a cruzar a linha fatal, quando o zagueiro Clebão intervém com um chute estonteante, evitando o gol iminente.
Ninguém pode acreditar na jogada, e os gritos se elevam, não tanto em celebração, mas em uma tentativa de afastar os receios. Essa cacofonia ressoa como uma oração futebolística pelos próximos dois minutos, até que Carlos Eugênio Simon colocou fim ao jogo com o apito derradeiro.
Era evidente a manifestação do medo entre os torcedores azuis, escapando pelas aberturas do teto desnudo do estádio. O grandioso rei Mineirão entendeu que naquele dia o trono seria ocupado pelos azuis, diante dos 80 mil súditos em total êxtase, enquanto os derrotados retornariam a São Paulo com a cabeça baixa em suas mãos.
Em tais instantes, os protocolos são meras sombras, e a efervescência do recém-coroado é equiparável à agonia do condenado à guilhotina, com a ressalva de que a cabeça, ao menos, tem a chance de retomar seu posto e buscar nova coroação. No campo do futebol, a contenda não é tão implacável como se sente.
Capítulo 12 - Epílogo
Alguns debatem que o futebol peca pela ausência do refinamento presente em outros esportes, como o tênis e a Fórmula 1. Os herdeiros de grandes fortunas, habituados aos esportes e às artes mais sofisticadas, muitas vezes falham em alcançar os mais altos escalões profissionais no futebol. Contudo, esta pode ser a única ocupação moderna na qual a maestria pode conduzir à glória, independentemente da origem. É por isso que muitos, antes relegados a uma existência modesta, conseguem transfigurar inteiramente a sorte de suas famílias e, quiçá, de toda uma linhagem.
Essa oportunidade de ascensão, desimpedida de limitações, que tanto perturba os abastados tradicionais quanto os revolucionários recém-chegados à nobreza, pode proporcionar ao futebol situações notavelmente cômicas e irônicas. Ele é frequentemente reduzido à expressão "apenas 22 homens correndo atrás de uma bola", e por vezes é considerado o esporte das massas e dos menos instruídos.
Não nos cabe a tarefa de defender ou argumentar a favor do futebol; a história o situará onde merece, assim como fez com os gladiadores romanos ou os atletas gregos em tempos antigos.
Contudo, uma única verdade podemos afirmar, gostemos ou não, sejamos abastados ou não: Nunca será apenas futebol.
Achados e Perdidos de Assis