Silêncio em Tóquio

Morrer em vida é a pior morte.

Toquio, sete e quinze da manhã, Naoya já está no metrô rumo ao seu trabalho em Shinjuku que é o centro financeiro da cidade. Quarenta minutos da sua casa até o escritório, passam rápido, Naoya aproveita para ouvir as descobertas da semana que o spotify selecionou para ele, nada de novo, algumas músicas pop mundiais, mas um terço de música brasileira. 

Isso lhe alegrava o espírito, como se o frio implacável de Tóquio fosse aquecido, momentaneamente, pelo batuque e suingue que lhe inundavam os ouvidos. Ainda restavam vinte minutos para que o metrô alcançasse a estação de Shinjuku, notoriamente o centro de transporte mais movimentado do mundo.

O Japão, com sua geografia exígua, sempre nos surpreende pela densidade populacional, pela movimentação precisa e pelo funcionamento impecável da sociedade, assemelhando-se a um relógio suíço. Pouco, entretanto, se fala do silêncio que permeia tudo. Naoya, porém, naquele instante, nem o percebia; sua mente divagava, transportada para uma segunda-feira na Pedra do Sal, no Rio de Janeiro, imersa no animado samba do trabalhador.

Naoya, que já se aproximava dos seus cinquenta anos, passou cinco anos no Brasil, atuando como consultor de mercados pela Toyota. Jamais se recuperou das marcas indeléveis que a cultura brasileira lhe deixou. O silêncio, outrora indiferente para ele, tornou-se um incômodo; aprendeu a preferir o ruído ao intrépido calar das vozes.

Perdido nos seus sons brasileiros, Naoya percebeu que já haviam transcorrido dez minutos, e, ao olhar pela janela, notou que o cenário permanecia o mesmo. O metrô estava parado, fato que lhe escapara. O silêncio reinava dentro do vagão, todos, mesmo comprimidos, permaneciam calados, olhos fixos nos celulares, livros, ou simplesmente contemplando o vazio. Sentindo-se um estranho no ninho, emergiu de seu transe musical tupiniquim e começou a inquirir os mais próximos sobre o que ocorrera.

Foi quando um grupo de garotas e garotos colegiais o fitaram com os olhos e disseram numa discrição que somente os japoneses perceberiam. 

“Um homem se lançara à frente do trem.”

Sabe-se que a cultura japonesa, com seu forte espírito de coletividade, muitas vezes supera outras sociedades, mas individualmente é comum pessoas se perderem e abreviarem a própria vida prematuramente, seja pela desilusão com expectativas educacionais ou afetivas, ou pelo excesso de liturgias sociais que os priva de certa liberdade mesmo em uma sociedade rica, cheia de benefícios e igualmente rigorosa. Talvez pela ausência de um ritual religioso que conceda absolvição genuína por pecados e erros, certas cargas se tornem excessivamente pesadas para aqueles que confiam apenas na lógica. No entanto, minha compreensão limitada do xintoísmo me impede de entender profundamente quais falhas podem impedir alguém de se perdoar e recomeçar de forma simples.

O japonês é pragmático, não se enreda em sentimentalismos e é direto em suas ações; se um homem pôs fim à própria vida, é porque tinha suas razões, agora restava aguardar pela rápida resolução da situação.

Compreendendo o ocorrido, Naoya prontamente informou seus colegas de trabalho sobre o incidente e retomou sua música brasileira. Contudo, ele não imaginava que esse retorno abriria um túnel de recordações e sentimentos desconhecidos para ele.

Quando a música "Canto de Ossanha" invadiu seus ouvidos, uma canção cujo ritmo Naoya sempre apreciou, embora nunca tenha compreendido completamente a letra, ele começou a se questionar.

Será que o homem que jaz morto diante do meu trem sofreu?

Será que ele enfrentou mais sofrimento antes dos eventos que o levaram a isso, ou durante o próprio ato?

E sua família? Será que ele tinha alguém para quem voltar?

Será que ele realmente viveu sua vida, ou simplesmente morreu em vida?

Essa última reflexão permeava a existência de Naoya desde os tempos em que viveu no Brasil. Durante sua estada, seu chefe brasileiro, Sebastião, um homem sério com uma vida familiar tranquila, que gostava de reunir todos para um churrasco aos domingos, convidou-o frequentemente para participar dessa típica celebração brasileira. Nesse mesmo período, Sebastião perdeu seu pai e Naoya, seguindo a cortesia japonesa que valoriza gestos de solidariedade, compareceu ao funeral, embora nunca tivesse conhecido o falecido pessoalmente.

Sebastião permanecia sério, como era seu costume no ambiente de trabalho, sem derramar uma lágrima. Ele cuidava de todos os detalhes e de todos os presentes. Suas duas irmãs estavam inconsoláveis, e sua mãe, embora séria, estava profundamente abatida. Naoya, sempre curioso pelas reações brasileiras, achou tudo um tanto contido e silencioso, quase como se estivessem no Japão; Afinal, no Brasil, onde tudo tende a ser mais expressivo e barulhento, por que seria diferente em um velório?, pensava ele.

Após toda a cerimônia, o caixão foi fechado. Sebastião seguiu à frente, segurando uma das alças junto a outros cinco senhores que presumivelmente eram amigos do falecido. Tudo transcorreu rapidamente; ao chegarem ao local, o caixão foi baixado, sepultado e todos partiram apressadamente. Naoya permaneceu, desejando oferecer palavras de consolo a Sebastião, que também ficou, aguardando o término de todo o evento.

Ao se aproximar de Sebastião, Naoya percebe os cinco homens que carregavam as alças do caixão agora cercando o filho privado de seu pai.

Um dos homens volta-se para Sebastião e pronuncia:

“Seu pai foi um grande amigo, mas sabemos que ele já morria em vida; resta-nos guardar o que de bom ele nos legou.”

O segundo homem prossegue em tom mais contido:

“Sonhar é crucial, jovem; sem sonhos, perecemos antes da hora.”

Todos, de alguma maneira, deixam mensagens semelhantes a Sebastião, que as aceita sem lágrimas nos olhos, sem alterar sua expressão. Isso intrigou Naoya, porém, a etiqueta japonesa sempre o inibiu de explorar ou questionar Sebastião sobre a vida ou o fim da vida de seu pai.

O som da música brasileira agora o perturbava, pois ele começou a sentir desconforto com o silêncio ao redor, com a aceitação da situação como algo comum (afinal, era). Logo, essa reflexão começou a se voltar para sua própria existência.

Naoya nunca se casara, não tivera filhos; alguns romances aqui, umas poucas paixões não exploradas ali. Morava sozinho numa casa pequena, porém confortável, equipada com toda tecnologia de que necessitava. Anualmente desfrutava de boas férias, às vezes esquiando, outras vezes explorando praias ensolaradas.

Mas afinal, qual era o propósito? Seria seu objetivo apenas buscar conforto e alegria para si mesmo?

Todo sistema existe para servir algo que está além dele, então para quem Naoya servia? Absorvendo conforto e cuidados consigo mesmo, ele encontrava uma paz notável interiormente, mas externamente, não tinha certeza de como era visto pelas pessoas, se era observado com admiração, respeito ou até mesmo ódio.

"Será que já morri em vida?", indaga Naoya com os olhos arregalados, dando início ao seu monólogo interior.

Ele busca intensamente em sua mente pelo seu propósito, aquilo que o impulsiona a despertar todas as manhãs, como o fogo que lança um foguete ao espaço. Num instante de claridade, compara-se ao "Pé de Pano", o cavalo do Pica-Pau (um desenho que tanto apreciava no Brasil), seguindo obedientemente a cenoura pendurada à sua frente pelo próprio Pica-Pau, que o guia com uma vara de pescar para onde lhe convém.

A vida medida pelo cronômetro nos oferece o conforto de simplesmente seguir adiante e agir, sem ponderar sobre o que construímos ou se de fato construímos algo significativo, seja uma casa no campo, um relacionamento, ou educar crianças para um futuro mais sólido. Tanto faz. No entanto, ao cronometrar meticulosamente cada ação sem um propósito definido, perdemos toda a poesia que a vida necessita para ser verdadeiramente vivida.

"Deus me livre de uma vida desprovida de sonhos e fantasias", murmurou Naoya, num gesto que refletia seu hábito adquirido no Brasil de invocar o divino em momentos de reflexão ou aflição, mesmo que por vezes a fé nele fosse incerta. No caso de Naoya, nenhuma.

Mas ao regressar ao Brasil, recordou-se de algo que empreendera com afinco. Um estagiário, menor aprendiz oriundo da favela do Rio de Janeiro, começava na Toyota. O jovem nutria um grande interesse por desenhos japoneses, mas enfrentava consideráveis dificuldades para compreender os documentos em japonês destinados ao escritório brasileiro. Isso era compreensível, especialmente para alguém cuja instrução na língua materna fora insuficiente, enquanto Naoya, por sua vez, progredia com notável destreza no aprendizado do português.

Naquela época, o japonês reservou-se, com sua timidez característica, a dedicar uma hora diária após o expediente para ensinar o idioma japonês ao jovem estagiário e a qualquer colega interessado no escritório. Durante doze meses consecutivos, o rapaz não faltou a uma única aula, o que Naoya interpretava como um sinal de seu profundo interesse em ler histórias em quadrinhos japonesas. Para Naoya, esse interesse não era trivial, visto que ele próprio apreciava imensamente os quadrinhos.

O encerramento das aulas coincidiu com o término de seu serviço no Brasil; em breve, o japonês regressaria à sua terra natal. Além de instruir o jovem estagiário na língua japonesa, Naoya tinha outro intento: assegurar sua efetivação na empresa. Assim, numa reviravolta notável, um dia antes da partida de Naoya de volta ao Japão, ele recebeu em mãos um documento enviado diretamente de Tóquio, confirmando a contratação do rapaz pela empresa.

Aquela emoção de atingir uma meta e ver um sonho se concretizar (mesmo que não fosse seu próprio sonho) nunca havia sido vivenciada por Naoya antes. Todas as suas aquisições, todas as viagens que fez, jamais lhe proporcionaram aquele sentimento de serenidade profunda que a realização de um sonho pode trazer à alma.

Era isso: carecia de mais sonhos, mais objetivos. Todos dentro daquele metrô já tinham seu bem-estar social assegurado, daí a apatia e a ausência de emoção naquela sombria segunda-feira em Tóquio. Naoya percebia que precisava empreender um esforço consciente para alterar sua vida, embora soubesse que no Japão poucos aprovariam ou celebrariam mudanças drásticas em sua trajetória.

Com um ímpeto que às vezes acomete os socialmente desajustados, ele desligou o som e sentiu um desejo repentino de fazer algo que desse vida à sua própria existência. Contudo, no mesmo instante, o metrô se pôs em movimento sem que ele precisasse fazer qualquer coisa, e ninguém dentro do vagão manifestou qualquer reação perceptível.

O dia escorreu, despretensioso e rotineiro, como tantos outros: labor, almoço, o regresso ao lar. Ao pisar os umbrais de sua casa, foi interpelado pelo timbre sutil do telefone. Era uma mensagem tímida de sua irmã, solicitando apenas que ele a contactasse ou fosse à sua residência. 

À semelhança de muitos de seus compatriotas, a irmã jamais era tão direta. Prontificou-se, então, a ligar, enquanto seus passos já o conduziam à morada dela, situada a escassos quinze minutos de sua própria casa.

Ao alcançar a casa, deparou-se com vários membros da família, todos imersos em uma tristeza silenciosa, como se estivessem no vagão de um metrô.

Lançou um olhar ao redor, procurando seu pai, e perguntou com voz firme e concisa: "Onde está meu pai?"

A irmã, suave e afetuosa, envolveu-o em um abraço, mas não suavizou a notícia.

"O papai se foi," disse ela, com uma doçura que não disfarçava a gravidade das palavras, "ele se atirou na frente do trem esta manhã, mas só agora tomamos conhecimento."

O silêncio imperava, sepulcral, na casa. A mãe, acabrunhada num canto, era a imagem do desamparo. Aquele homem, que sempre nos incentivara a lutar por nossos ideais, que confiava cegamente que nossos estudos e disciplina nos conduziriam a um futuro promissor, havia agora se extinguido. Não se enganara ele, pois eu e minha irmã estamos bem, conquanto solitários.

Como era de se esperar, incumbiu-se da missão de organizar tudo. O lugar escolhido para o velório, conhecido como otsuya, foi o modesto santuário instalado na residência dos pais. Todos trajavam branco, símbolo que nos momentos de luto evoca paz, silêncio e rememoração.

Neste momento todos vinham dar uma palavra para a família e prestar suas condolências, e alguns amigos do seu pai se aproximaram dele para algumas palavras mais particulares. O primeiro deles, em tom baixo e contido, disse:

"Seu pai era um homem sério, competente, motivo de orgulho para todos nós. Contudo, há algum tempo, deixou de sonhar, como se já estivesse morto em vida."

Essas palavras, carregadas de uma verdade amarga, penetraram profundamente, perturbando-o, embora mantivesse a compostura que o momento exigia.

Sua mãe aproximou-se e Naoya, com um arroubo pouco comum, indagou:

"Por que, mãe?"

Ela, serena como uma anciã que testemunhou mais do que seus olhos revelam, respondeu sucintamente:

"Não se pode deixar de sonhar, meu filho. Mesmo que os sonhos e ideais sejam para o futuro e não sejam realizados por você nesta vida, sonhar é essencial, obrigatório. Ter objetivos caminha lado a lado com os sonhos."

"Quanto ao seu pai, sonhou até onde pôde, depois não conseguiu mais", disse ela.

Num momento determinado, quando as condolências cessaram, todos se dirigiram a outro cômodo da casa onde eram oferecidas comidas e bebidas, geralmente aquelas que o falecido apreciava como uma homenagem. Naoya não possuía grande familiaridade com os gostos de seu pai, mas optou por ser prático, escolhendo servir Okonomiyaki, prato que sempre vira seu pai solicitar à mãe. Para o restante, preferiu itens simples. Contudo, sua falta de conhecimento sobre os desejos paternos apenas intensificou o amargor da situação.

Após esse momento, conforme é de praxe na tradição budista, um sacerdote recitou uma sutra e cada familiar dirigiu uma prece ao velho pai em seu caixão; em seguida, todos os presentes seguiram o mesmo ritual. O silêncio reinava, numa cerimônia que deveria ser profundamente triste, porém parecia apenas protocolar, sem um único sentimento fora de seu devido lugar.

Neste momento, a maioria das pessoas se retirara, deixando apenas os familiares e os amigos mais íntimos para a vigília até a cremação. Naoya era corroído pela tensão interna, dominado pelo desconforto até o Kotsuage, o ritual de recolhimento das cinzas e sua colocação na urna, na presença de todos.

Em seguida, a urna foi conduzida ao Altar Budista da família, onde permaneceria pelos próximos 49 dias conforme ditava a tradição. Um Kaimyo foi afixado na urna, uma placa com um nome póstumo, destinada a evitar que o falecido retornasse ao mundo dos vivos quando seu nome fosse mencionado.

Os 49 dias que se seguiram foram dolorosos não só pela perda do pai, mas pelas reflexões que assaltavam a mente de Naoya. A cada tentativa de encontrar uma base sólida para sustentar sua existência, ele se deparava com o vazio que ele mesmo havia construído: demasiado trabalho, consumo excessivo, escassez de amores genuínos e um compromisso reduzido com o próximo.

Após o período designado, ele regressa ao altar e conduz as cinzas ao santuário onde jazem as cinzas de seus antepassados, mantendo no altar apenas a fotografia do pai, para constante lembrança. Este rito é chamado Nokotsu.

Neste instante, um sentimento de vida não plenamente vivida envolveu Naoya novamente, ao perceber que todos os seus antepassados repousavam ali, enquanto agora restavam apenas ele, sua mãe e sua irmã. A linhagem deles poderia findar se ambos os irmãos não assumissem o encargo e o compromisso de perpetuar o nome da família.

Agora de tempos em tempos ele e a família deveriam honrar a memória do pai, mas ao sair do santuário onde repousavam as cinzas de seu pai, Naoya viu um homem alto e moreno à porta, segurando um papel. Um tanto atordoado, foi abordado em japonês fluente:

"Você é Naoya Misawa?"

Ele confirmou, e o homem abraçou suas mãos com extremo carinho, dizendo:

"Meus pêsames, amigo. Sou o rapaz a quem ensinou japonês décadas atrás no Brasil. Trabalho na Toyota até hoje e sou um dos diretores."

Neste instante, Naoya se viu envolto em lágrimas. Nunca saberíamos ao certo se era pela perda de seu pai, que deixara de sonhar, ou por ele mesmo estar seguindo um caminho desprovido de sonhos e objetivos. Talvez fosse simplesmente a comoção diante da revelação inesperada.

Talvez ali, Naoya tenha encontrado seu propósito; talvez não. A vida acelerada e artificial do Japão poderia levá-lo à sua ruína, em um eterno torpor de morte em vida.

"Um brinde aos sonhadores, aos que tentam e aos que realizam", pensou consigo. 

"É disso que somos feitos." Foram as palavras que ele conseguiu proferir ao rapaz antes de convidá-lo para tomar um sakê em um modesto Izakaya nas proximidades de Golden Gai.

Achados e perdidos de Assis 

Na próxima sexta-feira, dia 28 de junho, às 20:30, convido todos para uma live sobre "Desencantos" em meu canal no Instagram. Vamos explorar o livro, suas peculiaridades, e vocês estão convidados a perguntar à vontade.

Não esqueçam que também podemos debater individualmente "O Alienista ou Desencantos" na Terapia Literária. Vaiiii!