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Sombra Lunar: A Lua, a Janela e o Crime que se Justifica
Um filme pode ser apenas um filme ou pode ser o ensaio de uma moral futura

Este texto nasceu como roteiro para um programa que nunca aconteceu. Chamaria-se Cultura de Quinta: uma análise descabida, garbo e elegante das artes, das culturas e das coisinhas aparentemente desinteressantes. Guardou-se no silêncio até que os últimos acontecimentos o tornaram pertinente.
Aviso desde já: não falo aqui como especialista de festival europeu, mas como consumidor compulsivo desses que assistem tudo, inclusive o que é ruim. Aliás, sobretudo o que é ruim. Porque não há nada mais suspeito que um sujeito de Instagram dizendo: “eu só assisto filme bom”. Esse mesmo cidadão cresceu vendo Manoel Carlos e Glória Perez e agora posa de iniciado em Almodóvar. E não me entendam mal: eu gosto dos dois. Afinal, quem fez de José Mayer um galã não pode ser de todo desprezível.
Pois bem. O filme de hoje é In the Shadow of the Moon (Sombra Lunar, 2019), dirigido por Jim Mickle, escrito por Gregory Weidman e Geoff Tock, estrelado por Boyd Holbrook, Cleopatra Coleman e Michael C. Hall. Confesso que não conhecia nenhum deles, mas isso pouco importa. Está na Netflix, é um filme policial com pitadas de ficção científica. Nada de pretensões grandiosas: apenas entreter. E nisso cumpre seu papel. Mantém o suspense, prende a atenção. Tem aquele charme do cinema argentino só faltou Ricardo Darín entrando em cena para dizer “Hacen veinte y cinco años…”.
E já deixo o aviso: haverá spoilers. Se não gosta, pare a leitura, veja o filme e volte depois.
A trama começa com um policial da Filadélfia cuja esposa está prestes a dar à luz. Na mesma noite, uma sequência de mortes misteriosas acontece. As vítimas apresentam hemorragias internas e uma perfuração idêntica na nuca. Ele e seu parceiro investigam, conectam os casos e encontram a assassina: uma jovem mulher que incrivelmente morre durante a perseguição.
Nove anos se passaram. O ciclo se repete: as mesmas mortes, os mesmos sinais. Surge um cientista excêntrico, meio indiano, meio iluminado, explicando que, por causa de um alinhamento lunar, uma ponte temporal se abre. Eis o segredo: viagem no tempo.
E de fato, a tal assassina vem do futuro. O policial, agora viúvo (sua esposa morreu no parto da única filha), cria a menina sozinho, mas se afasta dela, consumido pela obsessão em resolver o mistério da assassina lunar. Para ele, matar era errado, um crime passível de punição severa. Inclusive ele dedica o restante da vida a perseguir e estudar aquela mulher que mata e desaparece sem punição.
Até que o grande plot twist se revela: a assassina é sua neta. Ele mesmo, no futuro, a orientou a voltar no tempo para impedir uma catástrofe.
A princípio, parece apenas ficção científica elegante. Mas vejamos além: o que esse filme tem a ver com eugenia, Janela de Overton, formação do imaginário e o tratamento dado às ideias conservadoras?
Primeiro, a tal Janela. Joseph Overton a descreveu como a faixa de ideias aceitáveis em determinada sociedade que se move. O que hoje é impensável, amanhã se torna discutível, depois obrigatório. E não se move por decreto, mas pelo imaginário. Pela sutileza. Pela repetição. E quem cuida disso? Basicamente a cultura: cinema, música, literatura, etc...
O truque é simples: não te mandam pensar diferente. Fazem você sentir diferente. E quando o sentimento muda, a moral já foi tocada, mesmo que a razão ainda ache que está no comando.
Pense no exemplo clássico: o aborto. Era impensável, pois se via como assassinato do ser humano mais indefeso. Veio o discurso de “controle de natalidade”, “meu corpo, minhas regras”. Tornou-se debatível. Depois, lei. E hoje mesmo os contrários já não o veem como abominável, mas como um fato corriqueiro: “ah, existe essa possibilidade e as pessoas fazem”.
No filme, a viajante do tempo é negra. O policial é branco. A filha dele, loira. O roteiro esconde o detalhe de que ela se casaria com um homem negro até o final, para reservar a revelação da linhagem como trunfo. Nada contra eu mesmo usaria.
Mas notem o detalhe: o primeiro alvo da assassina era um homem branco, extremista conservador, que falava em “retomar a Filadélfia para seus verdadeiros donos”. Não se explica muito, mas fica o recado: era um radical de direita. O policial descobre uma lista de adeptos que foram deduzido como futuros alvos. E essa tal lista formaria uma célula, no futuro, e cometeria um atentado que mataria 11 mil pessoas, iniciando uma guerra civil nos EUA.
A missão da neta era impedir isso. Mas não com flores, livros ou debates. Matando. Matando inclusive pais e avós de futuros culpados, para que eles sequer nascessem.
Parece nobre: salvar milhares de vidas, impedir uma guerra civil. A neta como heroína, o avô como mentor silencioso. Mas, espere. Lá no início, matar não era pecado? Não era crime absoluto? Pois é. A narrativa não manda ninguém fazer nada mas nos conduz ao “nesse caso”. E quando chegamos ao “nesse caso”, o universal já morreu.
Esse é o ponto: a janela se moveu. A moral se relativizou.
E a história confirma. A Revolução Francesa guilhotinou opositores. A União Soviética matou milhões em nome do povo. O nazismo exterminou os “inferiores”. A Revolução Cultural chinesa fez filhos denunciarem pais. Sempre começa com uma ideia impensável que vira ideia discutível.
Não é que Sombra Lunar vá sozinho mover a Janela de Overton. Mas imagine quarenta anos de filmes, músicas, livros, todos sugerindo que matar pode ser heroico. Não precisa de conspiração. Basta distração.
Eles são maus? Talvez. Mas talvez o problema seja que você nunca levou a sério a construção da sua própria moral.
A Janela se move no espaço entre o que você acredita e o que você tolera em nome da conveniência. Está na moça que se diz conservadora, mas troca a maternidade pela carreira pois não quer depender de homem. Está no rapaz de boa família que faz a despedida de solteiro em Goiânia (e Goiânia, convenhamos, é diferenciada). A moral se dissolve quando a vaidade se disfarça de liberdade.
No fim, Sombra Lunar é um bom filme. Atuação sólida, direção firme, suspense decente. Você pode assistir e esquecer.
Mas um olhar atento revela muito mais: revela como se ensaia o futuro no palco do imaginário.
E aqui está a lição: não se resiste a isso desligando a Netflix, mas formando um imaginário próprio, sólido, afiado. Porque se você não imaginar por si mesmo, haverá sempre alguém disposto a imaginar por você.